domingo, 29 de junho de 2014

ALDEIA DO MATO ABRANTES - REGISTOS PAROQUIAIS 1860-1911 - 9


 
A criança era colocada no exterior. O toque de uma sineta
dava o sinal no interior, onde se fazia rodar o sistema e recolhia a criança
(foto internet, município de Almeida, distrito da Guarda)

ALDEIA DO MATO 1860 A 1911
(UM ESTUDO DOS REGISTOS PAROQUIAIS)
(Continuação)
9

  OS EXPOSTOS
O nascimento de crianças indesejadas levava (e leva, ainda hoje), a atitudes extremas, violentas e chocantes, traduzidas no abandono. Ainda que hoje existam a figura da adoção e outros meios e recursos outrora indisponíveis, estas ocorrências são de uma frequência atroz. Tudo se passa(va) como se o problema fosse apenas da mulher, pois o homem facilmente se punha a salvo das suas responsabilidades. Também percebemos já aqui algumas das razões pelas quais muita gente não sabia a idade exata, nem a terra de nascimento nem o nome dos progenitores. 
De uma forma ou de outra, a mulher pretendia evitar ou esconder o fruto dos seus amores proibidos, e muitas vezes as crianças indesejadas eram mortas, abandonadas, ou, na melhor das hipóteses, adotadas por outras mulheres ou até pelas próprias mães, transformadas em amas!... Nos casos em que eram mortas praticava-se o chamado infanticídio. Nos casos de abandono, eram colocadas à porta de outras pessoas, à porta de Conventos, Igrejas, Hospitais, ou até à borda de estradas e caminhos! Eram os Expostos ou Enjeitados.
Convirá dizer que ao longo dos tempos governantes e Instituições Religiosas assumiram atitudes de alcance prático no sentido de favorecer a Exposição, para combater o infanticídio. Nas Ordenações Manuelinas há diversas disposições a este respeito.
Parece ter sido criado em Lisboa, no século XIII, o primeiro hospício para crianças abandonadas. Em Santarém, ainda em finais do século XIII, Dª Beatriz de Gusmão terá fundado um hospício para o mesmo fim, a que chamou Hospital de Meninos. Esta obra foi continuada pela Rainha Santa Isabel, e passou a chamar-se Hospital de Santa Maria dos Inocentes. Em 1325 surgiu, em Coimbra, a Real Casa dos Expostos. Em 1490, depois de autorização por bula de 13 de Agosto de 1479 do Papa Xisto IV, D. João II fundou o Real Hospital de Todos-os-Santos de Lisboa, que ficou dotado de um criandário com 200 crianças sustentadas por amas que inicialmente eram pagas pelo próprio Hospital e, mais tarde, pela Câmara da cidade.
A fundação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (autorizada por Bula do Papa Alexandre VI), ocorrida a 15 de Agosto de 1498, por iniciativa da Rainha Dª Leonor e inspiração do Frade Trinitário (espanhol) Frei Miguel Contreiras é um marco fundamental na organização da assistência em Portugal. Quando Dª Leonor morreu já existiam em Portugal mais de 60 Misericórdias, o que, na matéria em apreço, poderá significar mais apoio às crianças expostas ou enjeitadas.
Em 1585 foi criada figura e o cargo do "pai das crianças", homem "encarregado de recolher todas as crianças abandonadas, quer se encontrassem na berma da estrada, nas portas de casas particulares, das igrejas, ou em qualquer outro sítio, e de as entregar nos locais a elas destinados" (1).
Foi assim que se criaram as chamadas rodas, que eram colocadas em determinadas casas ou em conventos, permitindo que a criança depositada no exterior fosse recolhida no interior. O reconhecimento oficial das rodas foi feito por Dª Maria I e por Pina Manique, e entre 1783 e 1872 viriam a ser "o lugar oficial de recepção dos expostos" (1). A existência das rodas ficou associada a lugares e artérias das localidades que aí colheram o seu nome. Em Constância, por exemplo, existe a Rua da Roda, ao lado da Igreja Matriz.
A utilização das rodas parece ter reduzido o número de casos de infanticídio, mas a verdade é que que os expostos ou enjeitados foram grande preocupação do poder político e das instituições de inspiração caritativa e religiosa. É que, não raro, as crianças eram filhas ilegítimas de gente insuspeita!
As despesas com as amas ou criandários eram frequentemente assumidas pelos municípios. A título de exemplo próximo da nossa terra (e já que se falou de Santarém), podemos dizer que ao longo de todo o século XIX o Município de Tomar e Governo Civil de Santarém foram tomando medidas diversas, às vezes contraditórias entre si, no que respeitava aos "expostos, desvalidos e abandonados", havendo registos de 1839, 1873, 1874, 1875 e 1901 (2). Consultando Monografias, Anais, Livros de História da Medicina e até a História de Portugal, de José Mattoso (V volume), podemos constatar que os municípios pagavam diferentemente às amas, consoante eram de leite ou secas. Em 1865, por exemplo, a Câmara Municipal de Abrantes foi autorizada a "elevar os salários das amas dos expostos a mil e quatrocentos réis, às de leite, e a mil réis às de seco, tendo princípio em o 1º de Julho" (3). Encontramos até curiosos incentivos financeiros à criação de gado para produção de leite para as crianças expostas.
Mas estas crianças tinham a vida comprometida desde a conceção, pois algumas mulheres aceitavam-nas mais para obter um rendimento suplementar do que para cuidar delas, e a maior parte morria com tenra idade. Em geral havia dificuldade em contratar amas, até porque os subsídios não eram atraentes, sendo, ainda, pagos tarde e a más horas. Isto levou a que o Governo de Passos Manuel reconhecesse, em 1836, "o estado lamentável a que por toda a parte se acham reduzidos os expostos" (Portaria de 12 de Janeiro de 1836). As medidas administrativas tomadas viriam a ser revistas em 1842, impondo às juntas gerais dos distritos e às câmaras municipais que assumissem a contratação de amas para os seus expostos, assim como as respetivas despesas. Mas sabe-se que, ante a escassez de recursos, muitos municípios remetiam as suas crianças para as rodas dos municípios vizinhos, numa espécie de dramático esquema de passagem da bola...
Devido ao papel das instituições religiosas neste processo, à maior parte das crianças expostas eram dados nomes de santos, apóstolos ou outras figuras ligadas à Igreja: Ludgero, Tomé, Sebastião, Agostinho, Marta, Eva, Maria, Purificação, etc. E se muitos destes nomes ficaram na nossa freguesia, é porque na verdade muitos expostos para ali vieram, e em especial para a Cabeça Gorda.

9.1. Os Expostos nos Registos de Óbitos
Encontramos neste período e na freguesia de Aldeia do Mato 44 registos de óbitos relativos a expostos. Aqui ficam os seus nomes, alfabeticamente ordenados:
Afonso Vicente; Agostinho; Aleixo; Anastácia; Anastácio; Aniceto; António; Bernardo; Carolina; Constância; Eduardo dos Santos; Estêvão; Eugénia; Eva; Faustino; Francisco; Gregório; Helena; Henrique; João; José; Lisbão (4); Manuel; Marculiana; Maria; Mariana; Marta; Narcisa; Nicolau; Paulino dos Santos; Paulo; Silvestre; Tiago; Tomé; Zacarias.
Relativamente aos expostos que figuram no registo de óbitos podemos acrescentar:

9.1.1. A maior parte dos nomes aparece só uma vez, indo excecionalmente até quatro (Maria). Em geral têm conotação com figuras da Igreja Católica.

9.1.2. Os locais de óbito e os números foram:

Aldeia do Mato:...................3
Cabeça Gorda:...................21        
Casais:.................................2
Carreira do Mato:...............15
Medroa:...............................3

9.1.3. As idades com que morreram e os números foram:

Até 1 ano............................18  (40,9%)
De 1 aos 11 anos..................8
Dos 20 aos 30 anos..............5
Dos 31 aos 40 anos..............5
Dos 41 aos 50 anos..............2
Dos 60 aos 70 anos..............2
Com 78 anos.........................1
Com 83 anos.........................2
Com idade desconhecida....1

As conclusões que daqui poderemos extrair devem ser cautelosas. Estes números são apenas os que morreram entre 1860 e 1911, inclusive, embora se perceba claramente que os historiadores têm razão ao afirmar que uma grande parte morria com tenra idade, fosse onde fosse, incluindo pela Europa adiante. No nosso caso, 40,9% morreram até à idade de 1 ano.

9.2. Outras Referências a Expostos
Se atentarmos nos registos de batizados e de casamentos encontramos mais referências a expostos, embora sem podermos seguir-lhes a trajetória. São sobreviventes: pais, avós, homens e mulheres, vindos não se sabe quando nem de onde, mas que deixaram marcas: os descendentes e os nomes. Como forma de complementar esta abordagem, ficam alguns desses nomes, uma vez mais identificáveis com a Igreja Católica:
Adélia; Angelina; Bartolomeu; Bernardino; Braz; Domingos; Estanislau; Firmino; Genoveva; Joana; Ludovina; Mónica de Jesus; Paula Maria; Pedro; Roberto; Sebastião dos Santos.

Esta abordagem fica por aqui, esperando que fique minimamente cumprida a intenção de trazer à luz do dia este fenómeno chocante e recôndito da história da Aldeia do Mato.

Registe-se que a palavra “abandono”, nesta matéria não é consensual. De fato, colocar uma criança num ermo ou num matagal, ao frio ou ao calor, era condená-la a uma morte breve. Diferentemente, colocar a criança na roda, à porta de uma casa ou de uma igreja refletia o desejo de que alguém a acolhesse e a cuidasse.

(1) Dr.ª Beatriz Pena, in Saúde Infantil Nº 53, Pedopsiquiatria, Hospital Pediátrico de Coimbra, 1994. 
(2) vd. Anais do Município de Tomar, Alberto de Sousa Amorim Rosa, Câmara Municipal de Tomar.
(3) vd. Memória Histórica da Notável Vila de Abrantes, Manuel António Morato e João Valentim da Fonseca Mota, Câmara Municipal de Abrantes, 1981 e 1990.
(4) O registo indica claramente Lisbão. Convém dizer que muitas vezes as crianças vindas de outras terras também podiam ter nomes que com elas se identificavam, mais ou menos claramente. Esta palavra sugere Lisboa.
                                                                                                                                            (continua)
Manuel Paula Maça
manoel.maza@gmail.com


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