quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

ROSSINI NASCEU HÁ 220 ANOS

A PROPÓSITO DE “O BARBEIRO DE SEVILHA”



Para uma abordagem de O Barbeiro de Sevilha é necessário referir o escritor francês Beaumarchais, e a sua famosa trilogia de Fígaro: Le Barbier de Séville, Le Mariage de Fígaro e La Mère Coupable. Aportuguesando tanto quanto possível, diremos que Mozart escolheu "As Bodas de Fígaro", estreada a 1 de Maio de 1786, em Viena; Rossini escolheu "O Barbeiro de Sevilha", estreado a 20 de Fevereiro de 1816, no Teatro Argentina, em Roma; para mais tarde ficou “La Mère Coupable”, de Darius Milhaud (1892 – 1974), com apresentação no Grand Théâtre de Genève, em 13 de Junho de 1966.
Gioachino Rossini nasceu em 29 de Fevereiro de 1792, numa pequena cidade da costa adriática chamada Pesaro, que fazia, então, parte do Estado Pontifício. Viria a falecer em Paris, a 13 de Novembro de 1868. Teve uma infância agitada, por um vasto conjunto de razões. Os pais eram músicos: ele, instrumentista; ela, cantora.
Os tempos eram difíceis; as deslocações de terra em terra eram o pão-nosso de cada dia. A juntar a isto, um conjunto de eventos ideológicos, políticos e militares, tendo como pano de fundo as campanhas Napoleónicas, que chegaram a levar à prisão o pai do pequeno Rossini. A família conhece alguma tranquilidade quando se fixa em Lugo e em Bolonha, o que acabou por permitir ao pequeno contactos com obras de Haydn e Mozart. De facto, foi em Bolonha que sedimentou a sua formação musical, e, aos 19 anos, regeu "As Estações", de Haydn.
Por essa altura, e a par de alguns teatros de grande importância, nas principais cidades abundavam teatros pobres, às vezes sem coros e com orquestras com insuficiente número de músicos. Isto determinava a existência de músicos, cantores, compositores e, até, de empresários itinerantes. Neste cenário quase caótico, as obras eram pagas miseravelmente... mas isto também contribuía para o desenvolvimento da ópera em Itália.
É neste quadro que Rossini assina com o Duque Sforza, empresário do Teatro Argentina, de Roma, um contrato algo humilhante e pouco vantajoso, que o obriga a compor e levar à cena, no Carnaval da temporada de 1816, uma ópera cómica (opera-buffa, na linguagem operática). Seguindo os costumes da época, depois de paga, a obra ficava propriedade do empresário. Como tal, Rossini recebeu 1.200 Francos e a oferta de um casaco com botões doirados, para se apresentar decentemente vestido. Com ironia, Rossini atribuíu ao casaco o valor de 100 Francos...
Partindo da obra de Beaumarchais, Cesare Sterbini compôs o libreto, no meio de uma série de dificuldades que seria fastidioso enumerar. Finalmente, a 20 de Fevereiro de 1816 deu-se a primeira récita. O público não gostou, e na verdade uma série de incidentes serviram para que Rossini fosse grosseiramente comentado. Na noite seguinte o compositor argumentou uma indisposição para não estar no espectáculo. Mas desta vez o público gostou e saiu à rua a exigir a sua presença. Imortalizava-se assim "O Barbeiro de Sevilha".
Resta dizer que Rossini compôs 40 óperas e muita música religiosa.

Algumas vezes o compositor é acusado de falta de originalidade e de plagiar obras de outros músicos. Com efeito, os costumes da época eram algo permeáveis a alterações e adaptações das obras, já que a ideia de direitos de autor não existia. Mas Rossini tirava sobretudo de si próprio, e de facto algumas das suas obras incluem material extraído dos seus trabalhos anteriores.
Além disto, importa lembrar que Rossini levava uma vida agitada, e que viajava muito. Por vezes compunha as árias principais e encomendava o restante a músicos menores
Como curiosidade, note-se que Rossini também se notabilizou como bom cozinheiro e amante de boa comida. Ainda hoje alguns restaurantes servem os famosos Tornedós Rossini...


O ARGUMENTO

É madrugada. Aparece a rua onde se ergue a casa do Dr. Bártolo. O Conde de Almaviva, o Grande de Espanha, está desesperadamente apaixonado por Rosina, suposta filha do Dr. Bártolo. Acompanhado pelo criado Fiorello e por um grupo de músicos, oferece-lhe uma doce serenata e canta "Ecco ridente in cielo". Como Rosina não aparece e a manhã está prestes a romper, Almaviva paga aos músicos, que ficam teimosamente durante algum tempo a agradecer-lhe a generosidade, mas acabam por retirar-se.
É então que se ouve ao longe a voz alegre de Fígaro, cantando a célebre ária "Largo al factotum della città", onde faz gáudio dos seus dotes e das suas influências: todos o procuram, todos o chamam, todos lhe pedem opinião – ele é barbeiro, ele é cirurgião, ele é conselheiro! Sem ele não se casam as raparigas da cidade e até as viúvas recorrem aos seus préstimos...
Fígaro é (não admira) o barbeiro do Dr. Bártolo, e quando o Conde de Almaviva lhe confidencia o seu amor por Rosina fica no ar a promessa de uma ajuda para os aproximar, e uma revelação particularmente importante: é que Rosina não é filha, mas sim pupila do Dr. Bártolo. Ele próprio quer casar com ela!
O médico sai de casa. Almaviva e Fígaro traçam o plano: o Conde vai tentar que Rosina se apaixone por ele, mas não lhe revelará o nome nem a posição.
Por sugestão de Fígaro, Almaviva dedica a Rosina uma canção dizendo que se chama Lindoro. Ela responde mas é interrompida... Almaviva oferece ao barbeiro uma bolsa bem recheada de dinheiro, para ele lhe arranjar maneira de entrar em casa do Dr. Bártolo.
O plano de Fígaro é este: durante a tarde vai chegar um Regimento Militar à cidade. O Conde de Almaviva vai disfarçar-se de soldado e ficar aboletado em casa do Dr. Bártolo. Para não levantar suspeitas fingir-se-à embriagado; como é amigo do Coronel que comanda as tropas, o resto estará facilitado. Para o caso de algum imprevisto ou de mais alguma ajuda, Fígaro informa o Conde da localização da sua loja.

A acção passa a uma sala em casa do Dr. Bártolo. Rosina está só e recorda uma voz que há pouco lhe tocou o coração. Decide que Lindoro lhe pertencerá! Pretende, mesmo, fazer-lhe chegar uma carta às mãos, mas não sabe como. Nisto, entra Fígaro, mas a rapariga não pode falar-lhe porque atrás vêm o Dr. Bártolo e D. Basílio, este, jesuíta e professor de música.
Rosina e Fígaro retiram-se sem serem vistos. É então que Bártolo confessa a D. Basílio o propósito de se casar com a rapariga no dia seguinte. Esta é a forma que o velho avarento encontra para não ter que entregar-lhe o dote.
Mas D. Basílio tem uma novidade a dar-lhe: viu em Sevilha o Conde de Almaviva, o sedutor de Rosina! Mas o que importa a Bártolo é elaborar o mais rapidamente possível a escritura de casamento.
Fígaro ouviu a conversa e decide por Rosina a par das intenções do tutor. Esta, garante nunca se casar com ele, e confessa o seu amor por um jovem desconhecido com quem Fígaro falava pela manhã.
O barbeiro diz tratar-se de um primo seu chamado Lindoro, que se acha apaixonado. Rosina quer saber tudo, e Fígaro traça o retrato dela própria, o que a deixa radiante e feliz: "Dunque io son la fortunata!". Quando sai, Fígaro leva um bilhete escrito de Rosina para Lindoro/Almaviva.
De regresso, o Dr. Bártolo faz apertado inquérito a Rosina por causa de uma folha de papel que falta e porque o aparo da caneta está sujo de tinta... Ela justifica-se com o envio de um presente com um desenho a Marcelina, filha de Fígaro, que se encontra doente.
Batem à porta. Berta, a criada, vai abrir. Entra um soldado com ar embiagrado, ostentando um documento que lhe dá o direito a instalar-se ali. O Dr. Bártolo fica furioso e procura desesperadamente um documento que o isenta da obrigação de receber militares em sua casa. O soldado consegue dizer a Rosina que o seu nome é Lindoro. O Dr. Bártolo encontra o precioso documento, que exibe, triunfante, ao que o soldado (entenda-se Lindoro ou Conde de Almaviva) o destrói. Estabelece-se uma certa desordem, e D. Basílio entra no meio de um barulho ensurdecedor, com uma partitura na mão... Nisto chega Fígaro, com os apetrechos da sua profissão; discretamente, aconselha moderação a Almaviva, pois que a rua está cheia de gente a ouvir o que se passa.
Batem à porta. É a guarda que vem intervir! É dada ordem de prisão ao soldado. Este chama-o de parte e mostra-lhe as insígnias da nobreza. E tudo muda: oficial e guardas apresentam armas. O Dr. Bártolo fica estupefacto, incapaz de falar, ao que o barbeiro Fígaro comenta com ironia que o Dr. Bártolo parece uma estátua: "Guarda, Don Bártolo, sembra una statua".

E termina, assim, o 1º acto.




A acção do 2º acto inicia-se noutra sala, em casa do Dr. Bártolo.

O velho tutor está só e intrigado com tudo o que se passou. Ninguém conhecia o soldado, e por isso poderia pensar tratar-se de algum enviado do Conde de Almaviva.
Um jovem jesuíta apresenta-se cortesmente à porta. Diz ao Dr. Bártolo chamar-se D. Alonso e ser discípulo do professor de música D. Basílio, que está muito doente; por isso, vem substituí-lo na lição de música a Rosina.
O Dr. Bártolo fica desconfiado, mas acaba por deixar entrar o suposto D. Alonso, que não é mais nem menos que o Conde de Almaviva, que Rosina reconhece como sendo Lindoro.
Mas, por causa das coisas, o médico faz questão de assistir à aula de música!
Rosina canta uma ária. No final, o Dr. Bártolo declara que no seu tempo a música era outra, e exemplifica cantando uma ária à mistura com uns passos de dança com a sua pupila Rosina. É então que chega Fígaro, que disfarçadamente substitui Rosina na dança.
Quando descobre que está a dançar com o barbeiro, o tutor fica furioso...
Trava-se uma discussão em que o Dr. Bártolo, muito zangado, diz que naquele dia não quer fazer a barba. Fígaro argumenta que no outro dia não pode ele, por toda uma série de afazeres... além disso não é nenhum barbeiro de aldeia! Se ele quiser, que arranje outro! Vencido, o Dr. Bártolo entrega ao barbeiro um molho de chaves, para poder ir a determinada dependência buscar o que for preciso. De imediato Fígaro se apercebe que naquele molho está a chave de acesso à casa e que é essa a grande possibilidade de ajudar o Conde a raptar Rosina nessa mesma noite.
Quando Fígaro se prepara para começar a fazer a barba ao Dr. Bártolo, entra D. Basílio (supostamente doente). Estabelece-se grande alvoroço. D. Basílio olha com desconfiança para o jovem jesuíta. Os outros, instigados por Fígaro, convencem D. Basílio a ir deitar-se porque está muito doente. O falso D. Alonso (Conde de Almaviva/Lindoro) deposita-lhe nas mãos uma bolsa com dinheiro. Fígaro declara, mesmo, peremptoriamente, que D. Basílio está com escarlatina! O Dr. Bártolo, aflito, passa-lhe uma receita. D. Basílio não percebe nada da situação, mas como tem dinheiro na mão e insistem que está doente, acaba por fazer-lhes a vontade e ir-se embora.
Finalmente, Fígaro vai fazer a barba ao Dr. Bártolo. Tapa-lhe os olhos com sabão, para ele não ver Rosina a falar com o namorado, o que não evita que ele oiça algumas palavras, compreendendo que caiu num embuste. O barbeiro e o falso D. Alonso são insultados e postos fora de casa.
Convirá dizer aqui que Almaviva e Rosina se sentem felizes e decididos a celebrar o casamento nessa noite, para o que irão forçar o notário a celebrar a escritura. Para Almaviva é importante que Rosina tenha gostado dele supondo-o um rapaz pobre chamado Lindoro, embora na realidade Conde e senhor de grande fortuna. Este assunto é, aliás, tema de uma passagem que é frequentemente suprimida nas representações.
Através de uma escada, Almaviva e Fígaro entram por uma janela na casa do Dr. Bártolo. Rosina aparece vestida de noiva. Nisto entram na sala D. Basílio e um notário, posto que o avarento Dr. Bártolo ainda alimentava o projecto de uma escritura de casamento forçada, que o dispensaria do dote. Mas D. Basílio e o notário são convencidos a fazer, sim, a escritura do casamento de Almaviva e Rosina, dizendo Fígaro que esta é sua sobrinha...
Quando tudo se esclarece, o casamento está consumado. O Dr. Bártolo diz que foi traído, mas fica acomodado quando sabe que Almaviva renuncia ao dote de Rosina. Dir-se-ia que tudo está bem quando acaba bem. ~



























29-02-2012

Manuel Paula Maça
manoel.maza@gmail.com





Tornedós Rossini



(Colaboração de Felicia SampaioEditora Culinária do Roteiro Gastronómico de Portugal, na net)



Ingredientes:Para 4 pessoas
4 tornedós
6 colheres de sopa de vinho da Madeira
Pimemta moída na altura q.b.
4 Fatias de pão
2 Colheres de sopa de manteiga
Sal q.b.
60 Grs de Fois Grais
Confecção:
Em primeiro lugar usando um cortador, corte as fatias de pão do mesmo tamanho dos bifes.Em seguida frite as fatias de pão em margarina, escorra-as e mantenha-as quentes.Derreta as 2 colheres de manteiga numa frigideira e frite os bifes sobre o lume forte durante 1 minuto de cada lado.Reduza depois a chama e acabe de fritar consoante o gosto bem passado (+ 6 minutos de cozedura = 3 minutos para cada lado) mal passado menos tempo.Retire os bifes e tempere com sal e pimenta moída na altura reserve.Junte na frigideira o vinho Madeira mexendo de modo a soltar todos os resíduos dos bifes deixe fervilhar um pouco.Barre as fatias de pão com o Fois Grais.Ponha novamente os bifes na frigideira para aquecerem.Coloque por cima de cada rodela de pão um bife.Deite o molho sobre os bifes.Sirva com uma salada a gosto.























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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

MUSEU ACADÉMICO DE COIMBRA

No dia 14 de Janeiro, em Coimbra, no local em título, foi apresentado o livro “Museu Académico de Coimbra – A sua Evolução Histórica”, da autoria do nosso abrantino amigo Rui Lopes, de S. Miguel do Rio Torto.
O “livrinho” (no sentido intimista e afectivo da palavra) refere, com pormenor e com exaustiva citação das fontes, o caminho percorrido desde 1902 até à actualidade, num espaço temporal em que as intenções e as palavras foram adquirindo substancia e tomando forma, contornando dificuldades, tornando-se obra, deixando adivinhar a imensidão do trabalho desenvolvido. De facto, não é pelo volume (nem pela volumetria) que uma obra se afirma e se torna útil, já que a harmonia, a capacidade e o poder de síntese facilitam e favorecem a comunicação e a assimilação da mensagem.
O evento foi patrocinado pela Liga de Amigos do Museu, presidida pelo Dr. Emídio Guerreiro. O Eng.º Teotónio Xavier doou a colecção integral de discos de vinil de Artur Paredes; os familiares do Professor Doutor Manuel Ramos Lopes entregaram um quadro com uma caricatura do Dr. Ângelo Vieira Araújo, autor, que foi, de conhecidos temas da canção de Coimbra.





Deste modo fomos conhecer o museu, instalado no 1º piso do Colégio de S. Jerónimo, no conjunto onde até 1987 funcionou o Hospital da Universidade de Coimbra. O acervo museológico merecerá visita mais demorada, face à sua diversidade, riqueza e simbolismo e à correspondente informação descritiva e histórica. Uma visita que se recomenda e que surpreenderá agradavelmente.
O Dr. Rui Lopes licenciou-se em História na Universidade de Coimbra, onde está a concluir o mestrado, para além de outras actividades sociais, culturais, cívicas e académicas em que se tem envolvido. É o Primeiro Secretário da Liga dos Amigos do Museu Académico.
Fica, também, o registo da sessão de canto, viola e guitarra, a cargo do Grupo Porta Férrea, a

valorizar e a encerrar a sessão com dignidade e esplendor.


























Manue l Paula Maça
manoel.maza@gmail.com

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RIBATEJO, BREVES MEMÓRIAS PESSOAIS

"Do Alto Ribatejo e da Beira Baixa, eles descem às lezírias pelas mondas e ceifas.
Gaibéus lhes chamam".

Alves Redol



I – JANELA ABERTA
Ao longo da década de 60 do século passado as gentes da minha terra demandavam Lisboa, no cumprimento de uma espécie de desígnio, em busca daquilo que a terra madrasta lhes negava, muitas vezes com sonhos e pesadelos dispersos e disfarçados, confundindo-se no meio da modesta bagagem entulhada em cestos de verga. Se bem me lembro, a esperança morava no rosto luminoso do meu pai e o receio habitava nos olhos embaciados da minha mãe.
Com 11 frescos anos lá fui, Ribatejo adiante, empoleirado a granel dentro do velho carro de aluguer do meu saudoso padrinho Barquinha, com a marca Dodge e a matrícula FF-13-66. Esperava-me a chamada Escola Técnica Elementar Nuno Gonçalves, que iria seguir-se aos breves meses da EICA (Escola Industrial e Comercial de Abrantes) e ao quarto alugado na casa do Sr. Luís da B.P., na Rua Luís de Camões, em Abrantes. Não retenho saudades de uma nem da outra, e não tenho, felizmente, insucesso escolar a determinar tal forma de sentir. Há coisas difíceis de explicar racionalmente, mas talvez tivesse querido levar comigo os pinheiros, os pássaros, o rio, e uns pedaços daquele chão de pedras, carquejas e tojos, difíceis de combinar com as cidades, pois há coisas que se agarram a nós. Tardei, porém, a despir o horroroso fato- macaco azul que fui obrigado a usar enquanto aluno (estudante?) da EICA, que recordo como espécie de anátema ou castigo salazarento determinado e imposto pela humildade das origens – as minhas e as dos meus companheiros.
Ao domingo, Lisboa abria as portas, tornava-se manta de retalhos de um Portugal rural derramado, mas, ao menos, o fato-macaco azul da EICA ia ficando para trás. O jardim do Campo Pequeno, com a cervejaria José Ricardo quase na esquina, era o ponto de encontro dos meus conterrâneos que tinham ousado a aventura e o sonho, arrumando-se em casas partilhadas por várias famílias, ocupando sótãos e águas furtadas ou casas de porteira.
O apego às origens, à terra, não se apagava, não se esvaía, talvez que por uma questão de segurança, ilusória ou não. A aldeia era um porto de abrigo imaginário aonde se podia voltar, mesmo sem estar ali, à mão. Lá tinham ficado o Xico do Té, o Luís da Mónica, o Zé Timbela, o Estronca, o primo Josué, e muitos outros, numa aldeia antropologicamente no masculino.
De uma maneira ou de outra, habituei-me a atravessar o Ribatejo, inicialmente em longas e labirínticas viagens, que misturavam o comboio em terceira classe, o autocarro vagaroso e fumarento, o carro de aluguer e os percursos a pé. O Ribatejo havia, pois, de ficar-me entranhado na memória, talvez na carne e na alma virtual
Nesses tempos um carro gasto e usado poderia custar até 20 contos, e os meus conterrâneos lá iam gerindo o fôlego e a exiguidade material dos sucessos. O Vauxhall Wyvern velho e cansado do meu pai custou 16 contos e tinha a matrícula BE-16-41. Outros parentes e amigos tinham veículos como o Volvo “marreco”, o Peugeot 203, o Morris Minor, ou uma qualquer versão do velho Volkswagen.
O ritmo das viagens ocasionais à aldeia aumentava gradualmente: para visitar os mais idosos, para fazer a água-pé, para preparar as sementeiras, para ir à festa anual de Agosto, para trazer uma galinha ou uma saca de batatas... ou para matar saudades, ou para todas as coisas juntas, se não, mesmo, para dar sinais exteriores de uma prosperidade ilusória, ou tímida e pouco exigente. A partida de Lisboa, em grupo, era da Rotunda do Aeroporto. Lá íamos por esse Ribatejo imenso adiante, as velhas aranhas mecânicas saltitando entre os buracos e o alcatrão, aquecendo ou avariando intermitentemente, dando aos mais velhos espaço e oportunidade para beber um copo, afinar os neurónios e atestar a água dos radiadores fumegantes e cansados. Ficaram-me na memória dois locais onde habitualmente se faziam essas operações de manutenção, apesar de, em seguida, alguns carros terem que pegar de empurrão. Digamos que é aí que às vezes me encontro com algumas ausências, particularmente em Benfica do Ribatejo ou junto à ponte da Golegã. E não me recordo de um só conterrâneo, alguma vez, ter confundido vinho com água ou com gasolina, nestas complexas operações a requerer atenção, agilidade e uma mão-de-obra diferenciada.



II - AVIEIROS, GAIBÉUS E FERROVIÁRIOS
Por ironia e por circunstâncias da vida, volvidos muitos anos, deixei Lisboa e fui para uma cidade de província (centro litoral). Viria a passar muitos fins-de-semana em casa do meu amigo Joaquim, em terra de comboios e de ferroviários, com o Tejo ao lado. Por assim dizer, ficava ainda mais distanciado o Ribatejo de estradas esburacadas que conhecera enquanto criança e adolescente; penetrava, agora, num Ribatejo interior, com outras veredas e diferentes caminhos.
Muitas vezes, junto à lareira do Joaquim, depois do jantar servido pela Dona Preciosa, entre o digestivo da noite e o fumo aromático do cachimbo, com um jornal derramado ao lado, eu recordava as histórias onde o tio Luís e o meu pai me falavam na vida dura dos gaibéus e dos avieiros, sendo-lhes difícil adiantar explicações políticas ou sociológicas que fossem além das suas experiências pessoais de adolescentes adiados e resignados, entregues à colheita do arroz, na zona de Santarém, de sol-a-sol. Nestas conversas retrospectivas, eu adivinhava que no dia a seguir o Joaquim avançaria comigo pela Quinta da Cardiga, pela Azinhaga, pelos campos férteis da Golegã, e me levaria até junto de amigos que falavam da dureza e das incertezas da vida, naquela linguagem que o meu pai e o tio Luís me haviam deixado na memória e que eu passava a entender melhor, embora também soubesse que havia quem dissesse que Portugal era a inveja da Europa.
Por vezes, o amigo Joaquim colocava na mesa do almoço ou do jantar um vinho tinto da Quinta da Cardiga ou um branco fresco de cor dourada, da Adega Cooperativa da Chamusca. Não discutíamos Baudelaire, mas lá aconchegávamos o estômago e a mente, em saborosos momentos sem angústias existenciais ou metafísicas. Depois, era o doce aconchego do quarto que me esperava no primeiro andar daquela casa, numa rua sossegada da cidade ferroviária, onde eu saboreava a irrepreensível pontualidade de um comboio que passava a apitar pelas cinco horas da manhã.
O Joaquim guardava dentro de si, em estóico silêncio e impressionante secretismo, uma doença que lhe corroía as entranhas e de cuja dimensão tardiamente me apercebi. Como estas coisas têm limites, o tempo mostrou as garras da voracidade, e veio a partida inesperada, dolorosa, desnecessária, precoce e inexorável - uma perda com a marca do irremediável. Fiquei mais pobre, e o Ribatejo voltou a ser um espaço de passagem, com mais marcas de ausências!
Tudo isto e outras circunstâncias naturais da vida puseram termo a esses fins-de-semana e aos saudosos eventos que a memória retém. Os comboios continuam a sulcar os carris ao longo dos dias e das noites (apitando pelas cinco horas da manhã, se calhar) e o Tejo continua a espreguiçar-se majestosamente, quase ali ao lado.
Do vinho da Quinta da Cardiga, com a cor do sangue, nem sinais; o branco frutado, de cor dourada, da Adega Cooperativa da Chamusca, também não volta à mesa do Joaquim, porque o Joaquim também não volta.

III – AO SERVIÇO DA PÁTRIA
Deixei para trás a minha incursão de 3 meses, como recruta da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, no quente Verão de 1972, com a guerra colonial ao lado. Um espaço temporal que não deixou saudades, embora me pareça ter sido bom a marcar passo ou a fazer manobras essenciais para a salvação da pátria, como “esquerda e direita a volver” ou “apresentar arma”, e, até, a “queda na máscara”. Sem ressentimentos pessoais e sem prejuízo da compreensão que é devida, assumo que muitas vezes os instrutores até tinham semelhanças com os humanos, sem excluir o tenente a quem seria injusto chamar uma santa besta (era bípede), que se atirava como capão assanhado aos instruendos que marchavam mal, corrigindo-os à bofetada, em nome do cargo que cabia a um e da missão suprema que esperava o outro (um dia o outro ficou a sangrar, dos lábios ou dos dentes, embora não consiga recordar se ficou a marchar melhor, por efeitos da pedagógica bofetada). Mas este é o Ribatejo que não importa recordar, apesar de as coisas serem ainda mais refinadas em Tavira, onde decorreu a segunda fase da instrução. Embora tenha ficado no grupo dos bem classificados, princípios éticos, morais e de consciência determinam uma expressão saudosa de solidariedade para com os companheiros desta caminhada inglória, iniciada em Santarém (com o Tejo ao fundo). Fica, então, um olhar à memória do Sousa (de Montemor-o-Novo) e do Freitas (dos Açores), que acabaram por deixar a vida no teatro da guerra, em Moçambique.


IV – E AGORA?
Resta-me, então, o convívio com a imensidão docemente acidentada da campina ribatejana, de mãos entrelaçadas no passado e no presente, saboreando melão e vinho numa banca em madeira, à beira da estrada, numa consistência a que as cores, a luz e o calor do Verão dão alma e vida, sem que o Joaquim se aperceba de quantas vezes também viaja comigo. Imperceptivelmente!

29 Janeiro 2012


Manuel Paula Maça



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