sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O FADO DO FADO IV

Adeus Parceiros das Farras, dos Copos e das Noitadas


Amália Rodrigues (n. em 1920) emerge como profissional do fado na década de 30 do século XX. Em 1949 António Ferro levou-a à presença de Salazar, e em pouco tempo o fado passou fronteiras. Merecem-nos respeito a humildade das suas origens e a sua voz, que viria a correr mundo, ainda que pelas mãos do regime vigente. Em 1968, em Madrid, recebeu das mãos de Isabel Franco (cunhada do ditador espanhol) a condecoração de “Isabel, a Católica”. Foi a própria Amália que deixou a razão na sua biografia: “por eu cantar bem a música espanhola”.
Não iremos indagar sobre a música espanhola cantada por Amália, embora seja conhecida a incaracterística cantiga dos “caracóis e dos espanholitos”, e as menos divulgadas cantigas de amigo (galaico-português), como “pois nossas madres van a San Simon...”.

Fizemos este salto temporal para deixar algumas questões. Que voltas, que caminhos percorreu o fado, ao longo do século XX? Onde ficou a cantiga de viela, onde está a suposta canção nacional? Por onde andou a cantiga popular urbana de Lisboa, chamada fado, até desaguar nos circuitos comerciais, onde o vinho tinto cedeu o lugar ao uísque, na função de regar a goela?
Vimos como o fado chegou às classes média e alta, ou seja, como o produto das classes baixas passou para o consumo das classes altas. É nesse contexto de transformações imensas que surge a já referida profissionalização de músicos (executantes e mestres) e de cantadores, se não, mesmo de compositores de músicas e de letras, com uma espécie de "mão-de-obra artística". Compõem-se e vendem-se partituras de fados para piano, e, em 1848, instala-se e notabiliza-se a Casa Sassetti. Lisboa começa a dispor de salas de espectáculo com a designação de teatros: dos Condes, do Bairro Alto, do Ginásio, do Príncipe Real, da Rua do Salitre (que daria o “Variedades”), da Trindade.... Muitas delas são espaços polivalentes, e o próprio teatro de revista irá render-se à viola e à guitarra, e às vozes que se combinam, no masculino e no feminino. Surgem também, em consequência, os empresários.
São muitos os registos exemplificativos disponíveis. Recorremos ao já referido Tinhorão (8), que refere o empresário Ernesto Desforges, que alugou o Teatro Lisbonense, promovendo espectáculos orientados pelo mestre guitarrista João Maria dos Anjos: “no primeiro tocaram apenas 12 guitarristas, no último eram já 50”. Dos nomes associados a estes espectáculos ficariam desde logo para a posteridade o actor Taborda, Rosa Damasceno, Ribeirinho e Josefa de Oliveira. Quanto a João Maria dos Anjos, que fora sapateiro em Alfama, chegaria a professor de guitarra do futuro rei D. Carlos, numa carreira e num percurso de fazer inveja a executantes como o Luís Velhinho, mais conhecido por ter uma casa de burros de aluguer no Poço do Borratém.
Estão, pois, instalados os interesses comerciais, e definitivamente adoptadas e agarradas, como matéria-prima, as palavras que rimam com guitarra: farra, garra, bizarra, samarra, e poucas mais. Bons poetas viriam, também, a aparecer ou a ser adoptados.
Mas o fado viria a ter que enfrentar outros géneros musicais no teatro de revista, num momento em que os discos já circulavam no mercado. O período pós-guerra (1914 - 1918) trazia similares estrangeiros ligados ao jazz-band, que muitas vezes eram preferidos pelos empresários, e que o público acolhia com agrado. A "Sociedade das Canções" aproveitaria para esgrimir contestação ao fado, mas este acabaria por resistir, sobreviver e afirmar-se. Consta que Hermínia Silva, intérprete e actriz, teria sido determinante neste processo, na Lisboa da época.
A par do teatro, embora com menor expressão, veio a ajuda do cinema. Data de 1896 o breve documentário "O Fado Batido", com a duração de 5 minutos. Em 1931 viria "A Severa", primeiro filme sonoro português, dirigido por Leitão de Barros. Em 1933 viria "A Canção de Lisboa", de Cottineli Telmo, com Vasco Santana, Beatriz Costa e António Silva. Outros filmes musicais viriam, embora tenhamos que ser cautelosos e separar as temáticas do fado e das marchas de Lisboa, estas tanto ao gosto do Estado Novo, a par do pseudo-folclore do grupo "Verde Gaio", criado pelo regime.
Com o passar dos anos foram surgindo as associações e os clubes de bairro, e os restaurantes ou casas de fado. Permanecem, na memória ou de facto, casas como a Adega Machado, a Márcia Condessa, a Adega Mesquita, o Senhor Vinho, o Faia, o Solar da Hermínia e muitos outros. Modernamente surgiram os pubs.
São determinantes o desenvolvimento das tecnologias que vão permitindo gravações de som e o aparecimento das estações de rádio, estas a partir de 1935.
Se o fado não se subordina aos interesses comerciais, há, pelo menos, uma forte relação de cumplicidade, e teremos que entendê-la. O tempo não parou e o fado-canção também não tardou a afirmar-se. Na década de 60 Carlos do Carmo (por exemplo) gravou diversos discos cantando fados com acompanhamento de orquestra dirigida pelo maestro Jorge Costa Pinto (Editora Tecla). Pela mesma época, Amália Rodrigues gravaria "Povo que Lavas no Rio" (de Pedro Homem de Mello) e outros fados com acompanhamento de viola e guitarra... e de saxofone (o famoso sax-tenor Don Byas).
Não pretendendo deixar, propriamente, excessivo juízo opinativo sobre o assunto, será temeridade falar do fado como a canção nacional. Foi (é?), sem dúvida, a canção popular urbana de Lisboa, sem esquecer a variante coimbrã, com o seu inquestionável valor histórico. De resto, parece-nos subsistir uma perceptível pobreza de letras, e frequente ausência de repertório próprio por parte dos seus intérpretes, por vezes (ou cada vez mais) habilmente ultrapassada pelos denominados "arranjos musicais".
Encerramos com uma transcrição do diplomata inglês Rodney Gallop, que foi grande estudioso da música popular portuguesa. Em 1937 escrevia assim: "Não posso considerar o fado senão como síntese, estilizada por séculos de lenta evolução, de todas as influências musicais que afectaram o povo de Lisboa". E acrescentava: "No ritmo sincopado pode discernir-se a influência de danças exóticas, da África ou do Brasil, populares em Lisboa desde que o batuque foi introduzido...".
Seja como for, é com saudade que recordamos um jantar com fados na noite lisboeta, há alguns anos, entre amigos. Adivinhamos que até a sábia e esclarecida Condessa de Ficalho diria que um fadinho em boa companhia vai sempre bem.



Imagem Tofa Pacote Açucar

Manuel Paula Maça

manoel.maza@gmail.com

(continua)

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