domingo, 1 de agosto de 2010

Eça de Queirós na Carreira do Mato


EÇA DE QUEIRÓS NA CARREIRA DO MATO

“Tingi-me com amoras, fui irmão das abelhas, discuti com o Vento
E mais do que a erva e as árvores aproveitei-me da chuva”

Joaquim Pessoa



Nos tempos da infância, a minha avó e os homens da minha terra eram sábios. Neles habitava uma ligação panteísta à terra, como se tivessem nascido das suas entranhas, já com as mãos calejadas e as articulações necrosadas. Aceitavam resignadamente uma terra que comia mais do que aquilo que lhes dava, onde e quando felicidade e virtude coincidiam e rimavam com resignação.
Assim, a década de 50 corria vagarosa, num arrastar de dias, semanas e meses.
Os anos tornaram-se perceptíveis com a ida para a escola primária (curvo-me, com carinho, respeito e saudade em memória da D. Elisa). Era como se o “passar de classe” fizesse dos anos uma coisa visível e real, e a evolução e a mudança fossem coisas possíveis e, até, de algum modo, inevitáveis.
Para chegar onde pretendo, recordo que foi no final da década de cinquenta do século passado, que os receptores de rádio (as telefonias) começaram a chegar à Carreira do Mato. Eram aparelhos de válvulas incandescentes, alimentados por baterias de chumbo, que era necessário mandar carregar periodicamente, pois a energia eléctrica só viria em 1967 (27 de Agosto). Aquelas caixas enormes impressionavam e criavam à volta uma auréola de fantástico e maravilhoso. Recordo as lojas do Ti Martinho, do Zé Raloto, do Xico Neco, e de outros – valia a pena ir espreitar à porta e saborear aquele ambiente de colorida e estranha magia, com música e vozes vindas não se sabia donde.
Com a tecnologia dos transístores (menor espaço e menor consumo de energia), aos poucos, as casas particulares também começaram a ter telefonias a pilhas, embora, inicialmente, a sua posse pudesse ser considerada um luxo ou uma vaidade, até porque as pilhas não permitiam longo tempo de utilização, sendo caras e difíceis de obter localmente. Recordo e registo marcas de velhos aparelhos a pilhas, que iam fazendo a sua aparição: Philips, Siera, Blaupunkt, Grundig, Telefunken… O meu pai optou por um aparelho um pouco melhor, da marca National, que custou 1.800 escudos numa casa de penhores na Rua Duque de Palmela, em Lisboa – duas ou três semanas de salário, à data, imagino. Funcionava com 4 pilhas de 1,5 volts, em série (6 volts).
De um ponto de vista técnico, mas também histórico, convirá dizer que estes aparelhos funcionavam por modulação de amplitude (daí as iniciais AM), normalmente com onda média (MW), para recepção de emissões locais ou de curta distância, e onda curta (SW ou KW), para captar emissões de longa distância. Só bem mais tarde chegariam a Portugal as emissões em modulação de frequência (FM ou UKW).
Em 1930 foi criada a Direcção dos Serviços Radioeléctricos, na dependência dos CTT, em cujas instalações me lembro de ir pagar a taxa anual de 100$00.
As primeiras emissões em Onda Média ocorreram em 1932; as de Onda Curta viriam em 1934.
Em 4 de Agosto de 1935 foi criada a Emissora Nacional de Radiodifusão, tornada organismo autónomo em 1940.
Nascido em Fevereiro de 1931, também o RCP começava a emitir em Novembro seguinte. Mesmo assim, outras pequenas estações rádio privadas vinham emitindo desde meados da década de 1920, ainda que sem regularidade, pois fechavam nas férias ou quando os emissores avariavam e se esperava por peças sobressalentes (caso da CT1AA, fundada em 1924).
Os aparelhos de rádio influenciaram decisivamente a vida em família, trazendo a produção e divulgação de informação e de propaganda política, a criação de orquestras e grupos musicais, teatro e folhetins radiofónicos (estes, antepassados próximos das novelas televisivas), transmissão de cerimónias religiosas, relatos de desafios de futebol, etc. Graças à onda curta, ainda na década de 1930, surgiu o programa “A Hora da Saudade”, que podia ser acompanhado pelos emigrantes portugueses em continente americano e pelas tripulações e trabalhadores dos navios de pesca, em mares longínquos.
Recuando à velha casa onde nasci, na Carreira do Mato, revejo a minha mãe, a minha irmã e a minha avó materna, na modesta cozinha onde estava o rádio e onde, em geral, se passavam os serões.
Na aldeia, a qualidade de recepção das estações de rádio era má, à excepção da Emissora Nacional, mas vêm daí as minhas primeiras memórias de nomes como Walter Scott (o romance Ivanhoe), Odete de Saint-Maurice e Alice Ogando - porque só uns anos mais tarde, já em Lisboa e noutras estações, me chegariam “A Lélé e o Zéquinha”, com Irene Velez e Vasco Santana. A 18 de Março de 1947 vieram os “Parodiantes de Lisboa” (não esquecendo a “molenga” do Compadre Alentejano, ou o inspector Patilhas e o seu ajudante Ventoinha).
Eu não suspeitava que um dia, bem mais tarde, viria a ser um apreciador e curioso da obra e da biografia de Eça de Queirós, pois a Emissora Nacional também me prendeu com “A Ilustre Casa de Ramires”. O nome do autor e do romance ficaram-me na memória, e, talvez por isso, o primeiro livro de Eça de Queirós que me veio parar às mãos, ainda que antes de tempo.
Fica um pretexto longínquo para justificar, em parte, alguns textos que passarão a aparecer neste local, o que a nacionalidade e a universalidade de Eça justificarão.
Afinal, Eça de Queirós ia à Carreira do Mato!

Manuel Paula Maça manoel.maza@gmail.com


2010-07-28

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