domingo, 1 de agosto de 2010

A doença de Eça de Queirós


“… ontem, por equívoco e más informações, dei
um passeio tremendo (perto de 14 quilómetros)
sob um sol ardente e uma nortada furiosa
à busca do Pinhal da Guia!”

Eça, carta a Emília, Cascais, 11 de Maio de 1898


José Maria Eça de Queirós morreu em 16 de Agosto de 1900, em Paris. Era cônsul de Portugal, tinha 55 anos.
Perante descrições e fotografias facilmente associamos ao escritor fragilidade física e doença, embora uma altura estimada entre 1,72 e 1,75 m possa favorecer a ideia, em termos físicos.
Qual a doença que teria vitimado Eça de Queirós?
O tema tem merecido o interesse de biógrafos e historiadores, alguns deles médicos.
As hipóteses possíveis comportam riscos, já que os registos são insuficientes ou inexistentes, e os meios e as técnicas de diagnóstico da época eram limitadas. Ficam-nos, essencialmente, os escritos do próprio e dos seus amigos, que poderemos cruzar com aspectos familiares, viagens e alimentação. Mas surgem dificuldades que importa referir: por vezes, Eça utiliza uma linguagem pouco clara, ou quase codificada (fala de acrescentos, crescimentos, febres palustres, sublevação intestinal, “a minha malária”); depois, muita documentação perdeu-se e outra foi mantida e conservada pelos familiares, por razões de recato ou outras.
Eça viajava e trabalhava muito, alimentava recatadas mas ousadas aventuras amorosas, fumava, apreciava a boa mesa e saboreava longas noitadas, e parece que nem a família nem os amigos (médicos, alguns) se terão apercebido de alguma doença grave. “Para os médicos, tratar-se-ia de um cólon irritável (ou cólon espástico) e nunca adiantaram muito”, escreveu o Dr. Álvaro Sequeira (1), que, analisando e eliminando hipóteses, concluía com a possibilidade de um tumor maligno do corpo ou da cauda do pâncreas o ter levado à morte.
Importará, porém, a prudente asserção do referido clínico: “Nada nos garante que os sintomas que Eça vai apresentando ao longo de muitos anos sejam obrigatoriamente parte dum mesmo quadro clínico”. De facto, qualquer pessoa pode sofrer episodicamente de problemas respiratórios, digestivos, psíquicos, etc.
Muitos ascendentes de Eça teriam morrido de tuberculose pulmonar, e, mais tarde, seus irmãos Alberto e Carlos também teriam sucumbido à doença (1886 e 1888, respectivamente). Calvet de Magalhães (2) acrescenta à lista a irmã Henriqueta, que não vemos referida noutras fontes. Alguns investigadores viriam, pois, a apontar como causa possível da morte do escritor a tuberculose visceral (3). Gentil Marques viria a propor tuberculose mesentérica (4). Mais tarde, o Dr. António Catita colocaria a hipótese de amebíase intestinal crónica, com origem na viagem de 1869 ao Egipto e à Palestina, agudizada com a estada em Havana (1872 – 1874), que era outra zona endémica de amebíase (5). Afastada ficava, há muito, uma eventual tuberculose pulmonar, incompatível com os longos passeios que o escritor dava, a pé, mesmo quando ia a ares ou para as estâncias termais, tratar-se.
Recentemente, o Dr. Ireneu Cruz retomou o assunto (5), admitindo que os sintomas descritos são compatíveis com uma doença crónica que se instalou e desenvolveu durante 25 ou mais anos: diarreia crónica sem sangue, com emagrecimento, nevralgias, febre e, por fim, edemas dos membros inferiores, sugerindo uma síndroma de má absorção, uma deficiente absorção dos alimentos pelo intestino delgado. Grosso modo, e face ao arrastamento da doença, para este gastrenterologista não será de excluir a hipótese de um carcinoma, mas valoriza e deixa à discussão a hipótese da doença de Chron, para a qual a medicina não dispunha dos recursos de tratamento actualmente disponíveis.
Em geral, os biógrafos estão de acordo quanto à precária saúde de Eça nos últimos meses ou no último ano de vida. Afectado por alterações psíquicas e emocionais, pela doença de 2 filhos e por dificuldades financeiras, talvez lhe tenham faltado o ânimo e as faculdades para rever e fazer publicar diversas obras, que acabariam por ser editadas a título póstumo, com a intervenção de familiares e amigos. De facto, a partir de Fevereiro de 1900, a sua vida é um percurso de sofrimento, de terra em terra. Acabaria por regressar a Paris, onde viria a morrer a 16 de Agosto.

Os Médicos
Coloca-se a questão do papel e do desempenho dos médicos ao longo da vida, ou durante a doença de Eça de Queirós. Sabemos que alguns dos seus amigos eram médicos e um deles – Carlos Lima Mayer – estudou em Portugal e na Bélgica e quase concluiu o curso de Medicina (6), mas não há registo de que se tenham apercebido da degradação progressiva do seu estado de saúde.
O médico que mais acompanhou Eça foi o brasileiro Melo Viana, que também viveu em Paris. Em Maio de 1900 pediu o auxílio do famoso médico francês Bouchard. Também este recomendou tratamento nas termas suíças de Glion-sur-Montreux, provavelmente por se não ter apercebido da gravidade da situação clínica do paciente.
Ao desgaste e ao cansaço físico e psíquico, Eça junta as doenças dos dois filhos mais velhos, ainda que debeladas, sem sequelas.
No regresso da Suíça Eça é um homem debilitado, desesperado, afectado pelos habituais problemas financeiros. Volta a ser observado por Bouchard, que desta vez se apercebe do grave quadro clínico e manda preparar um soro salino isotónico, no Instituto Pasteur.
O soro não chegou a tempo, nem sabemos se teria utilidade.
O escritor morria na tarde de 16 de Agosto de 1900, aos 55 anos.

Manuel Paula Maça manoel.maza@gmail.com


2010.08.01

(1) Medicina Interna, Vol. 7, N. 3, 2000.
(2) “José Maria – A Vida Privada de um Grande Escritor”, Bertrand Editora, 1994.
(3) “Dicionário de Eça de Queiroz”, A. Campos Matos, Caminho, 1988.
(4) “Eça de Queiroz. O Romance da sua vida e da sua obra”, Romano Torres.
(5) “O Caso clínico de Eça de Queiroz – Contributo para a sua Patobiografia”, Dr. Ireneu Cruz, Caminho, 2006.
(6) Alguns biógrafos dizem que concluiu o curso e que era médico, o que não nos parece exacto.

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