terça-feira, 28 de outubro de 2008

Ao meu amigo João Pico, que também gostava de pêssegos


Ao meu amigo João Pico, que também gostava de pêssegos.



Ainda que com treino e hábitos na escrita, um principiante nestas andanças dos “blogs” tem as suas dificuldades, experimenta dúvidas e hesitações.
A amabilidade do meu amigo João Pico, no espaço onde desejo reconstituir e abordar temas relacionados com a bonita mas pobre terra onde nasci (a Carreira do Mato, igual a muitas terras neste Portugal de grandezas ilusórias, muitas vezes com versão actualizada), leva-me a passar para aqui o essencial do texto que lhe dirigi neste espaço. Como ele lida bem com estas coisas, que lhe dê visibilidade, se quiser.


Lá vai, há muito, o dia 17 de Julho de 1972, em que aportamos ao chamado Destacamento da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, como muito bem recordaste a este aprendiz de blogs (lá irei), a propósito do meu texto sobre a Carreira do Mato (O Ramo de Palmeira), de algum modo dedicado à minha mãe.

Falham-me os pormenores do nosso primeiro encontro, que agora me reavivas, com um saudável e amável bom humor. Excelente memória, concedo!
Achas, então, que na altura é que eu havia de ser candidato, a julgar pelas cartas que escrevia e recebia, por vezes coloridas e a dar nas vistas! Pois é, o Gabriel Garcia Marquez também tinha razão ao escrever: “há verdades que, quando as descobrimos, já não valem de nada”. Foi o que me aconteceu.
………..
Para além da idade, tínhamos em comum as origens no norte do concelho de Abrantes: eu, na Carreira do Mato; o João, no Souto (terra de meu pai). Tínhamos ido viver para Lisboa, também: ele em criança, eu com 11 frescos anos: o João Pico foi para Benfica e eu para a Rua António Pedro, ali perto da Praça do Chile. De resto, os nossos pais subiram uma vida a pulso e a esse esforço deveremos muito de alguma qualidade de vida, se esta acabou por vir. Recordo que meu saudoso pai, o Zé Carolino, pagou 500$00 por um diploma falso da 4ª classe, para poder ter carta de condução. Os pais não o deixaram ir à escola, mas ele foi autodidacta e leu regularmente o Diário de Notícias quase até nos deixar, a 8 de Agosto de 1991, com 65 anos.
……….
Esse Verão de 1972 foi coisa dura e sem tréguas. O Fiat 1500 ou os Datsun 2200 Diesel (o meu pai também tinha um) varriam tudo o que era concelho de Abrantes, de Norte a Sul, o mesmo é dizer de Alvega para a Cabeça Gorda ou para o Souto, ou das Mouriscas para Martinchel. Quantas vezes não saímos dos bailes das festas de Verão alta madrugada, para ir fugidiamente ao quarto vestir a farda e abalar para Santarém, para correr e marcar passo ao rufar de um tambor operado por um soldado de cabeça rapada!
Recordo, às vezes um homem com um saco na mão (um trabalhador rural com a comida para almoço?) a saltar assustado na berma da estrada, a pôr-se a salvo, enquanto o carro descrevia a curva em chiadeira. Santarém adivinhava-se no alto, o dia estaria prestes a romper, e às 6 e 30 havia que estar à porta do quartel.

Imensas são as recordações, João, e até já me tinha esquecido dessa fruta suculenta da Amoreira, ou seja, dos pêssegos que faziam luzir os olhos e estimulavam as papilas gustativas (vê lá a ironia: há bocado fui comprar uma ferramenta para abrir latas de fruta em conserva!!!).

Da vida militar retenho estas excelentes recordações: as amizades, os convívios. Depois da recruta, o João foi para o Porto e eu para Tavira. Tavira não me deixou saudades, apesar de ter sido um dos melhores classificados da especialidade de Sapador de Infantaria. Durante muitos anos recusei-me a ir lá, e há coisas que não vale a pena tentar racionalizar. Teria sido por causa da morte do Sousa e do Freitas, em Moçambique, pouco depois? Volvidos anos, acabei por lá voltar.

Quanto ao exercício militar, que me desculpem alguns bons amigos que seguiram a carreira, mas não a aconselho ao meu filho, em vias de ser mancebo. Não fiquei convencido.

Mas lá vinham os fins-de-semana ou umas curtas licenças. Lá continuava o nosso corrupio, às vezes repartido entre Lisboa e Abrantes.
Seria disparate que questões partidárias separassem amigos, quando valores superiores, quiçá coincidentes, os unem.

E a cerveja que bebemos em 1974, numa esplanada do Algarve, à beira-mar, perto de Lagos, na companhia de duas simpáticas inglesas? Mais uma vez Gabriel Garcia Marquez teria razão (volta atrás, no texto).

Não faz mal recordar que eram 39 meses de serviço militar. Ficamos pelos 30, devido ao 25 de Abril de 1974.

Manuel Paula Maça

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

ALDEIA DO MATO - SUBSÍDIOS HISTÓRICOS











As terras da Aldeia do Mato, concelho de Abrantes, estiveram até bastante tarde integradas nos domínios da Ordem de Malta (grosso modo, Ordem dos Hospitalários), com sede no Convento do Grão Priorado do Crato, na Flor da Rosa. Encontramos, aliás, escrito que esteve integrado no Almoxarifado da Amieira (1).

O nome poderá dever-se ao facto de por ali abundarem mato e lenha, numa época em que quase tudo o que a mata produzia tinha utilização, fosse como combustível, madeira, camas para animais, ou outros fins, sendo evidentes as mutações daquelas matas ao longo dos tempos, e mesmo do próprio século XX. Se hoje o eucalipto avança, o pinheiro bravo, a oliveira e o castanheiro figuram em muitos documentos de partilhas antigos.
A Carreira do Mato é, então, um dos lugares da freguesia. Os outros são: Bairros (Cimeiro e Fundeiro), Cabeça Gorda, Medroa, Vale de Chões, Pucariça, Vale da Vinha, Vale Manso, Conheiras e Casais. Outros pequenos lugares figuram em documentação antiga: Vale Salgueiro, Casinha, Figueiras, Vale Redondo, Várzea da Portela… e até “um” Rio de Moinhos!

Antigas referências
Diz-nos a revista ZAHARA, edição n.º 1 (2) que a povoação já é referenciada nos séculos XII / XIII, e que ali existiria a igreja de Santa Maria dos Matos.
Outra referência frequente é o cadastro da Estremadura, de 1527, que lhe atribui 15 moradores (entendam-se 15 famílias e arrisquemos 60 pessoas). Mais tarde (1712), o padre António Carvalho da Costa falava em “58 vizinhos”.
No contexto das Memórias Paroquiais do Padre Luís Cardoso, consta que em 1736 teria “80 fogos e 336 almas”. Nas respostas ao interrogatório datado de 5 de Outubro de 1759, o cura Matheus Lopes falou em 110 fogos, 321 pessoas de maior idade e 44 de menor idade.
Segundo o “Dicionário Chorográphico de Portugal e Ilhas Adjacentes” de 1885 (3), teria 399 varões e 438 fêmeas, o que totaliza 837 pessoas.
Um trabalho que oportunamente desenvolvemos em torno dos registos compilados pelo Padre Manuel Lopes Alpalhão (pároco entre 2 de Janeiro de 1901 e 10 de Julho de 1923), levou-nos a admitir uma população de cerca de 1.200 pessoas, por volta de 1910, talvez em arredondamento por excesso. À data, apuramos uma taxa de mortalidade infantil de 18,4% (até 1 ano de idade) e 30,8% até aos 10 anos!
A redução da natalidade e a desertificação humana (rumo a Lisboa e à Suíça, sobretudo), a par de diversos fenómenos de natureza social, levaram à situação actual, com uma população flutuante e muito menos de 1.000 eleitores inscritos nos cadernos eleitorais.

Outras curiosidades
Em 6 de Novembro de 1836 a freguesia de Aldeia do Mato foi anexada ao concelho de Constância, mas voltaria a Abrantes em 1837, no meio de um processo nada pacífico, envolvendo, aliás, outras freguesias e outros concelhos próximos. A “Memória Histórica da Notável Vila de Abrantes” (4) fornece-nos alguns pormenores sobre todo este processo.
As Invasões Francesas trouxeram um elevado preço ao nosso país. Junot (I Invasão) entrou em Abrantes na manhã de 24 de Novembro de 1807. A pacatez da nossa aldeia foi devassada, e os parcos haveres dos nossos antepassados roubados ou destruídos. Há mais de 20 anos abordamos o assunto num jornal local (A Nossa Terra Natal), em capítulos, e se o tempo e os afazeres nos deixarem a ele voltaremos.
Uma palavra final para lembrar que, no contexto da I grande guerra, 18 dos nossos conterrâneos foram combater para França. Vieram todos sãos e salvos… porventura com a alma a sangrar. Com uma jovem e periclitante República, Portugal queria estar do lado dos previsíveis vencedores e garantir o império em África.

Manuel Paula Maça

(1) O Grão Priorado do Crato estava dividido em quatro almoxarifados. A Aldeia do Mato estava integrada no Almoxarifado da Amieira. Vd. Amieira do Antigo Priorado do Crato, Tude Martins de Sousa e Francisco Vieira Rasquilho, Tipografia Popular, Figueira da Foz, 1936, e Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982.

(2) Maio de 2003. Eduardo Campos e Maria João Rosa. Edição Palha de Abrantes. Este trabalho é bastante desenvolvido e recomenda-se.

(3) E. A. Bettencourt, 3ª Edição.

(4) Manuel António Morato e João Valentim da Fonseca Mota. Conhecemos duas edições, ambas enriquecidas com arranjo e notas de Eduardo Campos.

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quarta-feira, 8 de outubro de 2008

RIO ZÊZERE: UM BREVE OLHAR RETROSPECTIVO


RIO ZÊZERE: UM BREVE OLHAR RETROSPECTIVO
A pesquisa bibliográfica feita para um apontamento histórico sobre hidrologia médica (publicado na edição n.º 209 da Gazeta do Tejo) trouxe-nos mais notas sobre o Rio Zêzere. Não iremos, agora, à origem do étimo nem à famosa “carta de composição” datada de 1208, mas ficam algumas referências históricas.De resto, o rio foi aliado e adversário de uns e de outros, nas encruzilhadas da história e da literatura. Terá merecido alguns versos de Luís de Camões, aquando do seu provável exílio na então Vila Nova de Punhete (Constância, actualmente). Terá frustrado os intentos de D. Manuel Godoy, na incursão conhecida como “a guerra das laranjas”, em 1801, que, ainda assim, nos levou Olivença. Dificultou a vida às tropas franco-espanholas aquando das invasões francesas, particularmente a de 1807, quando Junot, Carrafa e os seus homens experimentaram grandes dificuldades em enfrentar a sua força natural. Força que a barragem do Castelo do Bode viria a domar em 1950!Outros comentários? Lá iremos.
1. Um rio com águas de cor triste e verde negra
Em 1726, no Aquilégio Medicinal, o Dr. Francisco da Fonseca Henriques escrevia o seguinte (linguagem actualizada), no capítulo dedicado aos rios:“Este rio nasce na Serra da Estrela, perto do Mondego; vem com rápida corrente rodeando pela Beira, engrossando com as águas de outros rios, entre as quais leva o Nabão, até se meter no Tejo junto à Vila de Punhete. Acham-se nas suas águas grãos de ouro. São as suas águas de cor triste, e verde negra, e prejudiciais a pessoas achacadas de pedra, e areias, mas de grande virtude para inchações, principalmente procedidas de calor, e por isto se pode usar delas em hidropesias de causa quente; nos enfisemas e intumescências universais de natureza quente, assim para beber, assim como para se lhe cozerem os seus alimentos. Além disto também se entende que têm as águas deste rio particular virtude para se caldear ferro e aço, e para curtir linho, segundo o que por lição de Zacuto escreveu Frei Bernardo de Brito, de cuja Geografia Portuguesa o transcreveu Bluteau para o seu Vocabulário Português e Latino”.
2. Um rio lírico represado
Percorrendo mais uns anos, vamos encontrar no V Volume do Diário de Miguel Torga um texto de grande beleza, situado/datado em "Castelo do Bode, 19 de Março" (1950?). Diz assim:"A nossa paisagem física e psicológica vai-se pouco a pouco modificando. Os rios líricos, represados, começam a dar energia eléctrica, e os montes ossudos, repovoados, perdem pouco a pouco o seu perfil trágico e alucinado. O mundo caminha nas rodas do progresso, e atrás dele lá vai a atamancar a nossa harmonia bucólica e faminta. É pena que os homens não descubram senão em formas cosmopolitas. Que o mesmo saca-rolhas tire as rolhas de todas as garrafas. Cada terra devia ter os seus inventos próprios, as soluções próprias do seu caso. Assim, até o Mondego dos rouxinóis terá de dar um dia o seu quilovátio".
Manuel Paula Maça

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terça-feira, 7 de outubro de 2008

CARREIRA DO MATO - MEMÓRIAS



CARREIRA DO MATO – MEMÓRIAS

O Ramo de Palmeira

Nascer na Carreira do Mato no princípio da segunda metade do século XX era apenas uma coisa natural, um facto sociológico irrelevante na teimosa rotina do tempo. Não uma ventura nem uma desgraça, não uma fatalidade urdida por insondáveis desígnios com que teríamos de estabelecer pactos de acomodação. Uma realidade com as marcas do inevitável, com caminhos, atalhos e barreiras difíceis de transpor, onde não se entrava e donde dificilmente se saía, com o isolamento, as carências, a doença e a morte a rondarem, numa cumplicidade inevitável: mortalidade materna e infantil; acidentes de trabalho; a morte e as sequelas físicas e psíquicas, a que a medicina conferia vagamente a etiologia de causa desconhecida.
O rio Zêzere quase serpenteava à volta, e há abraços que sufocam. As águas da albufeira do Castelo do Bode começaram a subir em 1950, mas a alusão de Miguel Torga aos rios líricos represados ficará para depois.
Claro que o Norte do concelho de Abrantes seria, também e no fundo, um retrato a preto e branco do país mais atrasado da Europa Ocidental, não obstante a ilusão do Império e da mítica predestinação para dar mundos ao mundo.
Mas o bem e o mal não existem no absoluto ou no estado quimicamente puro, por assim dizer. Afinal, havia o contacto com a natureza, em toda a sua pujança e em todo o seu esplendor: o céu estrelado, por onde a minha avó sabia ver as horas; uma lua que esclarecia as mulheres grávidas ou fornecia indicações úteis para a vida agrícola; o cheiro inebriante da terra com as chuvadas certeiras de Setembro, ante o troar dos trovões e a grandeza assustadora dos relâmpagos que rasgavam o céu em línguas de fogo azul; havia o chilrear envolvente dos pássaros, ao sabor das estações; o gorjeio nocturno das corujas, condenadas a cadáveres crivados de chumbo, penduradas num pau alto, bem visível, para assustar e espantar das sementeiras outras aves atrevidas; o latir dos cães subnutridos e escanzelados, almejando por escassos e incertos restos de comida; os galos que inundavam as madrugadas com sonoridade, num despique de cantares fogosos. E havia uma solidariedade humana enorme, a que cediam as tricas e as desavenças pessoais, quando o infortúnio ameaçava ou a fatalidade se abatia sobre algum membro da comunidade, porque aí ninguém estava sozinho.
Claro que ao longo da noite a aldeia também estava povoada de entes sobrenaturais e misteriosos, como almas do outro mundo e lobisomens, com que era preciso saber lidar através de um manancial de rezas, amuletos e rituais. A própria alma do meu avô Maneiras vinha do além e vagueava pela noite, a cumprir misterioso fadário, porque em vida lera o Livro de São Cipriano! As encruzilhadas eram pontos a evitar; o cantar de um galo ou o uivar de um cão, à meia-noite, poderiam ser avisos ou maus presságios. Até o acto nocturno de despejar a água de lavar os pés tinha regras e horas próprias!
Finalmente, a graça de Deus era imensa e chegava para todos. Um crucifixo e umas litografias de santos nas paredes, se possível complementadas em eficácia por um ramo de palmeira na casa de fora, poderiam dar protecção à família, ali, numa aldeia onde a resignação e a acomodação não faltavam.
Lembro-me muitas vezes do nosso ramo de palmeira, à luz pálida e insegura do candeeiro a petróleo, complemento precioso das orações a Santa Bárbara, quando as trovoadas nocturnas se abatiam pelo Fojo e pelo Cabeço da Lebrinha adiante, vergando e arrancando impiedosamente os pinheiros indefesos.
Afinal – dizem os livros – a palmeira colhera ou dera nome milhares de anos atrás, em longínquas paragens do império de Salomão, na actual Síria, numa zona de oásis chamada Palmyra.
E Palmira era o nome da minha mãe!

Torre da Magueixa, 6 de Outubro de 2008 - maza.manoel

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